sexta-feira, 23 de janeiro de 2009


Reggio di Calabria, 23 de janeiro de 1978

Meu querido neto Mikhail,

Esta carta, antes de tudo, é para demonstrar o quanto você faz falta na minha vida. Vovó já não está tão bem como antes; sinto muitas dores e não consigo me alimentar direito. O médico disse que, se eu der “sorte”, ainda viverei mais alguns meses; estou com Acepinesi Asmática Aguda. Não quero que fique triste por isso, pois eu estou muito feliz em saber que estou prestes a reencontrar-me com seu avô. Ah, falei com o seu tio Bavolavisk esses dias e ele disse que ainda guarda aquela bicicleta azul que eu te dei e as fotos do dia em que nós fomos à Praça Vermelha; disse que quando for à Moscou levará para ti ambos. Bom, escrevo-te, entre outros motivos, para que você tenha algo que possa resgatar-te algumas singelas lembranças de mim, já que certamente não nos veremos mais.

Ontem, antes de dormir, veio na minha mente o dia em que sua mãe te levou pra minha antiga casa pela primeira vez; você já tinha por volta de um aninho de idade; era um anjinho. Garoto esperto que era já ensaiava alguns passos e palavras; aliás, a primeira vez que ouvi você sussurrar algo parecido com “vovó”, as lágrimas quase vazaram dos meus jovens olhos de 40 anos que, apesar da idade, já estavam cansados de ver tanta brutalidade e mesquinhez que só o homem é capaz de dominar com tanta capacidade. Vendo aquilo, pude ter um bocado de esperança no ser humano. Esperança; passaram-se 36 anos e esta palavra já não faz mais parte do meu vocabulário. Speranza, speranza (é assim que se fala aqui na Itália).

Parei para buscar no tempo e imaginei, pelas circunstancias, que aquilo ocorrera em algum dia de junho de 1942; lembro que havia vários rumores de que o exército alemão já tomara a Iugoslávia e que estavam perto de alcançar o nosso país. Mas Stalin, em mais um de seus discursos pomposos, calhava a dizer que estava tudo sob controle e que a “soberania Soviética não seria abalada”. Todos preocupados e apreensivos, quase havendo um ataque de medo coletivo, e você lá... no seu cantinho; preocupado apenas em conseguir se equilibrar a fim de alcançar o vaso de rosas que seu pai trouxera pra me agradar.

Seu pai. Ele era um rapagão alto e loiro; robusto e de olhos claros, com a diferença que os cabelos foram arruivando-se com a idade, o que era estranho para um típico russo como ele. Pensando bem, talvez fosse a exposição a grandes períodos de Sol que ele era submetido quando esteve no Exército Soviético. Falando nisso, a farda dele foi o que, de fato, fez a sua mãe se apaixonar loucamente. Teve uma vez que ela chegou correndo da rua e disse-me com pressa: - Mamãe, mamãe... – (expirava, inspirava,expirava, inspirava) - ...acabei de encontrar o soldado mais bonito do mundo lá na Praça Vermelha (olha que curioso, a bendita Praça na nossa vida de novo). E eu, com receio de que seu avô escutasse, disse pra ela falar baixo antes ele pudesse imaginar que a sua filhinha querida vivia por aí a espreitar “malditos rapazes comunistas”, como ele dizia.

Seu avô ainda acreditava que os Czares eram os verdadeiros representantes da Nação e queria que a Monarquia voltasse (apenas ideologicamente, ele não era louco de enfrentar o poder); achava também que os soviéticos eram um bando de corruptos sujos e sem caráter. Certo dia, quando estava enfermo, ouviu alguém comentar da sala o nome de Lênin; ele, lá do quarto, tirou forças não-sei-d’onde e bradou bravamente: - Maldito seja esse filho da puta (desculpe-me o baixo calão).

Apesar de você ser muito mais sereno, eu via, na sua adolescência, muito dele; principalmente a voz grossa de pastor de ovelhas dizendo aos berros: - Ô Vó, ô vó; minha irmã jogou pedra na janela do vizinho. Pareciam duas crianças, você e ela. Não entrarei em detalhes sobre a pessoa de sua irmã porque poderei ser leviana e escrever besteiras, pois você a conhece muito melhor do que eu.

Bom, meu filho. Depois que eu vim para a ponta da bota da Itália, a nossa relação fui muito distante e isso foi muito penoso pra mim; você, além de um neto querido e único sobrevivente da sua geração, sempre foi um representante do seu avô ao meu lado, o que alimenta ainda mais o meu pranto. Estava aqui fazendo as contas e relatei que desde 1963 não nos vemos. Sinto muito a sua falta; os portugueses diriam saudade. Pena que não poderei conhecer sua esposa e seu filho (o nome dele é mesmo Vlaskes? – se for, é um belíssimo nome) e nem te dar um grande abraço. Espero-te na próxima vida (se é que há outra).

Ah, espero que goste da foto. Tenho certeza que ela trará ótimas recordações.
Adeus. Arrivederci (como dizem por aqui).

Atencionamente e com muito carinho,
sua querida avó Clara Vucovick.