segunda-feira, 2 de novembro de 2009

jardim

Eu ia escrever uma redação agora; mas redações não têm metáforas, rimas, nem musicalidade.
Para fazer uma considerada de boa qualidade é necessário, entre outras coisas, argumento, introdução, conclusão... ão, ão, cão.
Eu ia, mas não vou mais. Nada de regras!

Quero escrever temas que tangenciem algo poético, algo iluminado sobre as estrelas, sob estrelas. Quero cantar a lira dos pássaros, flautear com os canarinhos; quero olhar ao meu redor e assistir ao balet das flores, sentir o calor do vento.


Poderia também desabar no colo de uma morena; ela com suas encaracoladas lãs a tocar o meu rosto. Depois ficaria nu e ela me pintaria numa rocha avessa a intemperismos. Dalí um tempo refrescaríamos nossos corpos na água e dançaríamos com as sereias e com os tubarões; seria “um sempre no nunca”.

Depois disso rolaríamos no areal, nos amando, nos tornando chave-fechadura. Aí dormiríamos ali mesmo, ao Sol, um sonho manso, um descanso terno, eterno.

(*) arte: Natália Gregorini

terça-feira, 14 de julho de 2009

ciclo cítrico

O legal de ficar imaginando o que se passa na cabeça dos outros seres enquanto eles, quietos, passam horas, dias, senão vidas num universo único e infinito, é tentar buscar um sentido qualquer na forma com que o silêncio deles pode se manifestar em palavras. Por exemplo...

Nesse instante, do outro lado da rua, há uma garotinha apreciando as orelhas de um cachorro; ela nem fala nada, acho que nem tem idade para tanto, contudo a quantidade de pelos e pulgas enlouquecem-na, já que seu tato em sintonia com a sua mente ingênua deixam-na numa dúvida existencial infinita [(“por que tantos pelos?) x (por que tão por quê?!”)]. Porém essa dúvida pode não ser uma dúvida; as pulgas podem ser carrapatos. Mas a garota lá encontra-se: atônita.

Poucos metros à direita têm uma tartaruga embaixo duma árvore. Esta apenas balança os galhos por conta da inércia do vento; já aquela, irredutível, está numa briga corporal interminável com uma pedra branca. Estas duas, em silêncio, xingam-se reciprocamente com os piores palavrões eufemísticos que poderiam xingar-se {[“sua, sua... (galinha)] ÷ [“sua, sua... (areia)”]}. Mas esta possível briga pode ser uma troca de carinhos; a galinha pode significar “réptil máster”, a areia pode ser “diamante sul-africano”. Mas elas lá encontam-se: lacônicas.

Deste lado da rua, com cabelos cacheados e bolsa à tira-colo está o Fabrício; incompreensível-observador, papel, caneta à mão direita, fones de ouvido: horas e horas a observar aquela garotinha do outro lado da calçada que aprecia as orelhas de um cachorro; ela nem fala nada, acho que nem tem idade para tanto, contudo a quantidade de pelos e pulgas enlouquecem-n...

quarta-feira, 10 de junho de 2009

na sé

O sentido Jabaquara já dava alguns sinais de vida, quando uma senhora nipônica de cabelos grisalhos e roupa simples instalou-se atrás de mim, que estava com pé-e-meio encima da faixa amarela.

Vendo a sua situação, com cordialidade, dei um passo atrás para que ela passasse à minha frente. Enquanto fazia este movimento, ela tomando o meu ex-lugar, olhei bem rápido para o seu rosto e ganhei, assim, de presente, um sorriso maior que todos os vagões juntos; o que me deixou muitíssimo feliz e com um bem-estar tão grande a ponto de deixar qualquer escoteiro com inveja.

Em poucos segundos a locomotiva quase toda já passava pela boca do túnel, tomando por completo o corredor de parada. Neste meio tempo a senhora mexeu e remexeu a sua bolsa preta à procura de coisa qualquer. Logo, como num espanto, ela, agora com um sorriso comparado ao de um transatlântico, virou para mim retirando as mãos da bolsa com um punhado de balas; olhou nos meus olhos e pediu carinhosamente para que eu estendesse as minhas. Hesitei como quem não quisesse, mas logo cedi e entreguei-me ao agrado.

Agradeci.

Entramos, coloquei as balas na bolsa, sentei um tanto longe. Olhei para onde ela tinha repousado e lá estava: vidrada num anúncio de plano dentário com aquele mesmo ar da passagem e de balas doces. Fiquei contentíssimo quando me dei conta que aquele simples gesto ajudou a lapidar com um lindo sorriso um rosto humilde, cansado das pernas e dos desrespeitos.

E as balas estavam ótimas.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

no toalete público.

Nem estava tão apertado assim, mas fui; com muita preguiça, por sinal. Tem hora que é melhor você segurar um pouquinho e fazer em casa aquele bem gostoso (que te dá as melhores sensações prazerosas) – do que parar a caminhada pra ir ao banheiro público e ter que sentir o cheiro feio de limão com chorume bravamente lapidado por dias=e=dias de mijadas mal lavadas com desinfetante Mauar.

Como ia dizendo, fui até o fétido. Já tinha uma filinha considerável no momento em que cheguei. Dei aquele geral no mictório e tinha uns 5 homens urinando em uma placa de aço inox de uns 5 metros de comprimento; fiz a conta utilizando-me do Teorema de Pitágoras (?) e cheguei à incrível conclusão de que tinha 1 metro pra cada indivíduo, o que ainda não proporciona o mínimo conforto para quem urina. É necessário, pelo menos, 1,5 metro de distância para que o respingo do camarada ao lado não atinja sua calça; mesmo assim tem uns mangueira-de-bombeiro que tem a manha de te molhar inteiro, estes geralmente são os tão falados: negrões.

Em meio a tantos marmanjos, a maioria deles suados e mal-cheirosos por conta do dia duro de trabalho, havia um velhinho que aparentava uns 64 anos nas costas. Ele, desde o momento em que peguei a fila até quando terminei de larvar as mãos (mais ou menos uns 7 minutos), não saiu do mictório. Tudo bem que as vezes não dá pra mijar com um monte de gente por perto, mas ele estava demorando muito, o que me despertou uma intensa curiosidade.


Passei a reparar o velhote. Foi aí que tive a sacada, querido amigo: o tiozinho tava dando um bizu no passarinho da galera. Isso mesmo, era um velhinho bicha e tarado. Eu não acreditei na hora; achei que ele estivesse tendo algum problema, ou sei lá o que. Mas depois passei a acreditar no causo, e o pior, meu caro, achei que ele tivesse fazendo movimentos horizontais repetitivos, mas depois me dei conta de que ele apenas estava dando “uma espiadinha”.

A rapaziada mais esperta também ganhou a cena e tava evitando chegar perto do velho; tava todo mundo indo pra um cantinho mais reservado lá no canto da parede. Os mais desavisados e apertados instalavam-se ao lado dele e nem sequer davam conta de que o mesmo apreciava o seu pênis, o que era muito engraçado pra quem assistia à cena.

Chegou a minha vez; por sorte o cantinho ficou livre bem na hora. Fiz o que tinha que fazer olhando pra quina da parede, é claro, e fui embora. Antes passei pelo velhote e lá estava ele: saciando-se com todos aqueles salames brancos, pretos, mamelucos, cafuzos, caducos e tortos. Imagino que a noite deve ter sido muito divertida e diversa pra ele.

É.
Como tem louco nesse mundo, velho e bicha.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009


Reggio di Calabria, 23 de janeiro de 1978

Meu querido neto Mikhail,

Esta carta, antes de tudo, é para demonstrar o quanto você faz falta na minha vida. Vovó já não está tão bem como antes; sinto muitas dores e não consigo me alimentar direito. O médico disse que, se eu der “sorte”, ainda viverei mais alguns meses; estou com Acepinesi Asmática Aguda. Não quero que fique triste por isso, pois eu estou muito feliz em saber que estou prestes a reencontrar-me com seu avô. Ah, falei com o seu tio Bavolavisk esses dias e ele disse que ainda guarda aquela bicicleta azul que eu te dei e as fotos do dia em que nós fomos à Praça Vermelha; disse que quando for à Moscou levará para ti ambos. Bom, escrevo-te, entre outros motivos, para que você tenha algo que possa resgatar-te algumas singelas lembranças de mim, já que certamente não nos veremos mais.

Ontem, antes de dormir, veio na minha mente o dia em que sua mãe te levou pra minha antiga casa pela primeira vez; você já tinha por volta de um aninho de idade; era um anjinho. Garoto esperto que era já ensaiava alguns passos e palavras; aliás, a primeira vez que ouvi você sussurrar algo parecido com “vovó”, as lágrimas quase vazaram dos meus jovens olhos de 40 anos que, apesar da idade, já estavam cansados de ver tanta brutalidade e mesquinhez que só o homem é capaz de dominar com tanta capacidade. Vendo aquilo, pude ter um bocado de esperança no ser humano. Esperança; passaram-se 36 anos e esta palavra já não faz mais parte do meu vocabulário. Speranza, speranza (é assim que se fala aqui na Itália).

Parei para buscar no tempo e imaginei, pelas circunstancias, que aquilo ocorrera em algum dia de junho de 1942; lembro que havia vários rumores de que o exército alemão já tomara a Iugoslávia e que estavam perto de alcançar o nosso país. Mas Stalin, em mais um de seus discursos pomposos, calhava a dizer que estava tudo sob controle e que a “soberania Soviética não seria abalada”. Todos preocupados e apreensivos, quase havendo um ataque de medo coletivo, e você lá... no seu cantinho; preocupado apenas em conseguir se equilibrar a fim de alcançar o vaso de rosas que seu pai trouxera pra me agradar.

Seu pai. Ele era um rapagão alto e loiro; robusto e de olhos claros, com a diferença que os cabelos foram arruivando-se com a idade, o que era estranho para um típico russo como ele. Pensando bem, talvez fosse a exposição a grandes períodos de Sol que ele era submetido quando esteve no Exército Soviético. Falando nisso, a farda dele foi o que, de fato, fez a sua mãe se apaixonar loucamente. Teve uma vez que ela chegou correndo da rua e disse-me com pressa: - Mamãe, mamãe... – (expirava, inspirava,expirava, inspirava) - ...acabei de encontrar o soldado mais bonito do mundo lá na Praça Vermelha (olha que curioso, a bendita Praça na nossa vida de novo). E eu, com receio de que seu avô escutasse, disse pra ela falar baixo antes ele pudesse imaginar que a sua filhinha querida vivia por aí a espreitar “malditos rapazes comunistas”, como ele dizia.

Seu avô ainda acreditava que os Czares eram os verdadeiros representantes da Nação e queria que a Monarquia voltasse (apenas ideologicamente, ele não era louco de enfrentar o poder); achava também que os soviéticos eram um bando de corruptos sujos e sem caráter. Certo dia, quando estava enfermo, ouviu alguém comentar da sala o nome de Lênin; ele, lá do quarto, tirou forças não-sei-d’onde e bradou bravamente: - Maldito seja esse filho da puta (desculpe-me o baixo calão).

Apesar de você ser muito mais sereno, eu via, na sua adolescência, muito dele; principalmente a voz grossa de pastor de ovelhas dizendo aos berros: - Ô Vó, ô vó; minha irmã jogou pedra na janela do vizinho. Pareciam duas crianças, você e ela. Não entrarei em detalhes sobre a pessoa de sua irmã porque poderei ser leviana e escrever besteiras, pois você a conhece muito melhor do que eu.

Bom, meu filho. Depois que eu vim para a ponta da bota da Itália, a nossa relação fui muito distante e isso foi muito penoso pra mim; você, além de um neto querido e único sobrevivente da sua geração, sempre foi um representante do seu avô ao meu lado, o que alimenta ainda mais o meu pranto. Estava aqui fazendo as contas e relatei que desde 1963 não nos vemos. Sinto muito a sua falta; os portugueses diriam saudade. Pena que não poderei conhecer sua esposa e seu filho (o nome dele é mesmo Vlaskes? – se for, é um belíssimo nome) e nem te dar um grande abraço. Espero-te na próxima vida (se é que há outra).

Ah, espero que goste da foto. Tenho certeza que ela trará ótimas recordações.
Adeus. Arrivederci (como dizem por aqui).

Atencionamente e com muito carinho,
sua querida avó Clara Vucovick.